Propagandeado pelo MEC por contratos a juro zero, novo formato do fundo não 'pegou' e taxa de ociosidade no 1º semestre de 2018 supera 62%. Governo muda regras e tenta salvar sistema
O que já foi esperança de formação superior e de um futuro melhor virou incerteza e ociosidade. O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) enfrenta uma das piores crises dos últimos anos. Depois de experimentar uma ascensão meteórica e seu apogeu, o sistema agora despenca quase na mesma proporção. O primeiro semestre letivo está quase no fim, mas o processo de contratações de empréstimos via fundo ainda não acabou. Isso porque apenas 30 mil, das 80 mil vagas oferecidas para o período, foram preenchidas, uma ociosidade de 62,5%, segundo estimativa da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes).Visivelmente, o novo Fies, que propagandeou contratos a juro zero, não “pegou”. Para frear a derrocada, governo alterou novamente as regras para o segundo semestre. O baixo percentual de financiamento das mensalidades é apontado como o grande gargalo do sistema.
O Fies teve seu ponto alto em 2014, quando 732.674 contratos foram firmados, um recorde na história do programa. No ano seguinte, com a crise que começou a assolar o país e mudanças nas regras, o número de vagas despencou para menos da metade, mas a quantidade de estudantes que aderiram ao financiamento foi alta – apenas 8,8% de contratações não foram acertadas. Em 2016, o cenário muda. A ociosidade pula para 37,4%, mas cai para 21,8% em 2017. No primeiro semestre do ano passado, quando foram disponibilizados 150 mil vagas, 21,3% delas não foram preenchidas, ou seja, mais que o dobro do número de contratos foram assinados, na comparação com o mesmo período deste ano. Para todo 2018, o governo anunciou 310 mil contratos, sendo 100 mil com recursos públicos e 210 mil com o chamado Fies privado (direto com o banco).
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC), não informa quantos contratos já foram firmados este ano, alegando que o processo ainda está em curso. Mas, durante participação por vídeo num congresso de educação em Comandatuba (BA), no início do mês passado, o ministro Rossieli Soares informou que 35 mil contratos haviam sido firmados, um pouco mais que a estimativa da Abmes. A assessoria de imprensa do MEC diz que o dado foi apresentado, inicialmente, em coletiva que tratava das mudanças sobre o teto e o mínimo financiado e que o levantamento havia sido feito apenas para aquela situação específica, podendo o cenário ter mudado.
A Associação das Mantenedoras contesta os números oficiais e diz que a baixa adesão está diretamente ligada aos percentuais de financiamento do curso disponibilizados no primeiro semestre de 2018. “São valores muito pequenos, algo em torno de 10% a 15%. Logo, se a mensalidade custa R$ 1 mil, o financiamento é de R$ 100”, explica o diretor-executivo da Abmes, Sólon Caldas. Se de um lado há uma quantidade enorme de alunos precisando de financiamento e de outro, um número expressivo de vagas, por que a conta não fecha? “Não tem adesão, porque o governo precisa disponibilizar uma política pública que atenda a necessidade da sociedade. Para que as vagas sejam todas ocupadas é necessário disponibilizar financiamento de 100%”, ressalta.
Diante de um percentual de empréstimo baixo, associado a um cenário de desemprego ou de salários insuficientes pra custear a mensalidade, a educação aparentemente tem ficado em segundo plano. “Para corrigir o que está errado, o governo precisa entender que educação no país é investimento e não gasto nem rombo fiscal. Quem tem renda per capta de três salários mínimos precisa de condições diferenciadas. Disponibilizar 100% para o aluno pagar depois de formado é fomentar a empregabilidade”, afirma Solón, citando dados do Ministério do Trabalho segundo os quais quem tem curso superior tem renda aumentada em 180%, e do IBGE, cujas pesquisas mostram que o ganho salarial aumenta três vezes com a graduação. “Isso tudo faz com que o aluno tenha condições de devolver o dinheiro. Não estamos falando de bolsa, mas de empréstimo.”
ANGÚSTIA
Aluna do 9º período do curso de psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, Lorena Dagmar, de 29 anos, tem financiamento estudantil de 75%, obtido antes da crise. Ela conta que o Fies foi determinante para dar prosseguimento à faculdade, cuja mensalidade gira em torno de R$ 1,4 mil. A estudante diz que passou o ano de 2014, quando ingressou no ensino superior, e o primeiro semestre de 2015 tranquila, até começar o pesadelo. Depois disso, sempre enfrenta problemas na renovação. Todo semestre tem que ir ao banco com a mãe, fiadora, e o pai, por ser o cônjuge. “Paramos um dia de trabalho para ir ao Banco do Brasil resolver problema do Fies e assinar a papelada toda de novo. Sempre tenho medo de ter algum problema e de não conseguir.”
Faltando um período apenas para a formatura, Lorena, que faz estágio na área, não vê a hora de tudo isso terminar. “Eu queria muito fazer a faculdade. Sei que estou acumulando uma dívida, mas, depois que me formar, darei um jeito de pagar”, diz. Ela espera se estabilizar financeiramente durante o período de carência – prazo anterior ao início do pagamento do valor devido ao governo – e, assim, não ter problemas para honrar o compromisso. Primeira na família a se graduar, ela relata o orgulho de todos, mas também os percalços. “A gente passa por muita dificuldade. Não era nem para existir algo do tipo do Fies, se tivéssemos uma sociedade justa, na qual quem vem de escola pública conseguisse competir em pé de igualdade com os alunos das particulares por uma vaga em universidade federal. Mas, como isso não ocorre, infelizmente, essa compensação é necessária”, diz. “Não é o melhor dos mundos. Pago uma parte da mensalidade e continuarei pagando, mas é o que temos. Lutamos com as armas que temos e, se é isso o que resta, vamos lá.”
Três perguntas para
Andréa Ramal, consultora e doutora em educação pela PUC-Rio
O fator financeiro é o único ou algo mais explica o desinteresse pelo Fies?
O fator financeiro realmente pesa muito. O país ainda passa por uma grave uma crise econômica, com mais de 12 milhões de desempregados. Os índices de 10% e 15% (de financiamento) são extremamente baixos, desestimulam os candidatos. Os pais estão cada vez mais receosos em relação ao Fies, acompanhando a piora nas contas do governo federal, e temendo uma eventual perda dos benefícios ao longo do curso. Além disso, a burocracia é enorme, assim como a lista de exigências e os constantes problemas nas inscrições.
Pode-se falar numa descrença em relação ao ensino superior?
Não acredito. Os brasileiros entendem, cada vez mais, a importância de se formar e buscar, com mais chances, vagas no mercado. Além disso, pesquisas recentes atestam que os profissionais com ensino superior chegam a ganhar 10 vezes mais do que os que têm ensino médio. A descrença é relacionada às regras, dificuldades financeiras das instituições públicas e problemas de gestão das faculdades.
Como reverter essa derrocada?
Antes de falarmos em mais mudanças no Fies, o foco deve ser no investimento no ensino público, qualificação de professores, ações para a redução da violência no entorno das escolas e implementação de políticas que aumentem, de fato, a qualidade da educação brasileira. Nos últimos anos, a pauta do país vem sendo ocupada por questões econômicas, políticas e, principalmente jurídicas, deixando a educação em segundo plano.
Índice de crédito vira pegadinha para aluno
O percentual de financiamento a ser obtido no Fies é uma caixinha de surpresa. Há regras pré-determinadas pelo sistema. O estudante deve ter tido nota mínima de 450 pontos em qualquer edição do Exame Nacional do Ensino Médio feito a partir de 2010, mas a pontuação é classificatória. Quanto melhor o desempenho, maiores as chances de conseguir entrar no programa. Para gerar o percentual de financiamento, o sistema leva em conta ainda o valor da mensalidade, da renda e o comprometimento desses ganhos diante da despesa – o que só é conhecido só na hora. Assim, quem entra na faculdade achando que terá 100% de crédito pode ter más surpresas.
Com tantas vagas ainda em aberto, as chamadas remanescentes voltaram ao páreo desde o fim de maio. “O processo não terminou. As aulas começaram em fevereiro. Muitos alunos estão chegando ao fim do semestre sem financiamento, porque não conseguiram acesso ou porque o percentual obtido foi pequeno. Contraíram uma dívida com a instituição na expectativa do financiamento de 100%. Com essa situação, a evasão aumenta e o estudante ainda fica com a dívida. Como não firmou contrato, a instituição vai cobrar é do aluno”, afirma Sólon Caldas, diretor-executivo da Abmes.
Por Junia Oliveira/Site Estado de Minas
Postado em 09/07/2018 06:00 / Atualizado em 09/07/2018 07:45
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