Renovação na composição do Congresso Nacional nas eleições de 2018
Opinião
Publicado em 25/01/2018

 

Por Adilson Abreu Dallari

O foco deste comentário está no destaque de algumas inconstitucionalidades e absurdos, diante dos princípios constitucionais, que vão prejudicar seriamente a renovação dos quadros do Congresso Nacional. Alguma coisa talvez possa ser corrigida pelo Supremo Tribunal Federal, pela via da interpretação evolutiva, conforme ocorreu com as contribuições de pessoas jurídicas para as campanhas políticas e com a possibilidade de prisão após decisão de segundo grau.

Este texto está sendo escrito às vésperas do julgamento da apelação apresentada por Lula ao TRF-4, assunto que tem gerado muitas discussões e uma enorme expectativa, havendo até ameaças de violência (até de morte) feitas por partidos políticos e movimentos populares. O julgamento, em si mesmo, do ponto de vista jurídico, nada tem de especial, pois esse mesmo tribunal já apreciou diversas apelações de sentenças proferidas pelo mesmo juiz, em casos correlatos. A peculiaridade está na pessoa do apelante, pois, se a sentença for confirmada, ela se tornará inelegível, nos termos da Lei da Ficha Limpa, que vem sendo normalmente aplicada.

Essa possibilidade faz com que o cenário das eleições de 2018 esteja indefinido; muita gente aguardando o desfecho do julgamento para depois se posicionar. Isso se aplica a candidatos tanto ao Executivo, quanto ao Legislativo, mas o enfoque deste artigo está centrado na composição do Congresso Nacional, muito especialmente da Câmara dos Deputados. Como é sabido, a grande massa do eleitorado está absolutamente desencantada com os integrantes das Casas Legislativas federais (e com os políticos em geral), havendo uma enorme expectativa de mudanças, com a não reeleição dos parlamentares atuais e de que novos candidatos possam vir a ser eleitos. Lamentavelmente, essa renovação radical certamente não ocorrerá.

É preciso lembrar que a Constituição em vigor não foi fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte, mas, sim, de um Congresso com poderes de constituinte, cujos membros foram eleitos nos termos da legislação eleitoral então vigente, a qual foi editada para, deliberadamente, viciar ou falsear a representatividade. Evidentemente, cada constituinte, pensando sempre e acima de tudo na sua reeleição, cuidou de manter ao máximo as regras e critérios que o beneficiava; daí porque o sistema político, eleitoral e partidário, constante da Constituição em vigor, é estruturado para manter privilégios, permitir toda sorte de arranjos espúrios e, fundamentalmente, para dificultar a renovação dos quadros políticos.

Uma luz no fim do túnel se acendeu quando o STF entendeu ser inconstitucional a doação de recursos pelas pessoas jurídicas, aos partidos e candidatos. O gatilho para esse avanço foi a descoberta de uma formidável rede de corrupção, conforme sinteticamente anota Bolivar Lamounier:

Os escândalos de corrupção inaugurados com o “mensalão” e elevados à enésima potência nos últimos cinco anos demonstraram que as deficiências da democracia brasileira são muito maiores do que pensávamos. Mas não atinamos para o fato de que, mesmo num eleitorado de grandes proporções, os procedimentos criados para garantir eleições “limpas e livres” podem ser fraudadas por práticas em princípio lícitas, mas desleais ao espírito da democracia e, portanto, imorais. Entre estas, um exemplo egrégio é o clientelismo de larga escala, infinitamente mais pernicioso que o antigo “voto de cabresto”, que se pode embutir em políticas públicas e programas sociais. (Política, democracia e ética pública, OESP, 31/12/2017, p. A2).

Essas práticas lícitas, mas imorais, são, algumas delas, de duvidosa constitucionalidade, pois se chocam flagrantemente com os fundamentos do Estado Democrático de Direito. A liberdade de organização e funcionamento dos partidos não é absoluta, pois existem pautas, estabelecidas pela CF, com eficácia de princípios, que estão sendo desconsideradas, como o caráter nacional dos partidos e o fato de que o mandato de cada deputado é dependente do voto que o eleitor deu ao partido. Quem sabe, algum dia, o STF se dê conta de que a multiplicidade de coligações é incompatível com o caráter nacional do partido e que as “janelas” para mudança de sigla são uma traição ao eleitor. Essa tolerância incentiva a criação de uma miríade de legendas de aluguel, que servem para falsear ainda mais a representatividade e propiciar a compra de votos parlamentares.

Um pequeno detalhe da EC 97/17 mostra bem as dificuldades para a esperada renovação nas eleições de 2018. A proibição de coligações nas eleições proporcionais somente se aplicará a partir das eleições de 2020. A cláusula de desempenho (ou de barreira, disciplinando acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de TV) não vale para as eleições de 2018 e será aplicada gradativamente, em cada nova legislatura, até completar-se em 2030. Em síntese, os atuais integrantes do Congresso Nacional cuidaram, zelosamente, de manter seus privilégios. Some-se a isso o fundo eleitoral, tecnicamente designado como Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, cujo montante será dividido a cada uma das 27 bancadas estaduais, ou seja, aos atuais partidos com representação no Congresso.

Outro absurdo foi trazido pela EC 86/15, que alterou o artigo 166, parágrafo 9º, 10 e 11, tornando vinculantes e de execução obrigatória as emendas de parlamentares à lei orçamentária. Com isso, os atuais parlamentares alimentam seus currais eleitorais, numa troca espúria de favores e apoios. O disposto nesses parágrafos viola escandalosamente todas as regras que disciplinam o sistema orçamentário, traçado pelos artigos 163 e 165, ao substituir o planejamento pela improvisação, além de comprometer o princípio da separação de Poderes e criar uma enorme vantagem para postulantes à reeleição, viciando a legitimidade dos pleitos.

O absurdo maior, todavia, está no disposto do artigo 56 da CF, que permite a um membro do Legislativo exercer funções no Executivo, o que é totalmente incompatível com o princípio da separação de Poderes. Nas candentes e vigorosas palavras do ministro Flavio Beirrenbach, trata-se de mais uma jabuticaba, de um estelionato institucional, uma charlatanice bem-sucedida, “feita por um Congresso travestido em constituinte”.

O texto precisa ser lido na íntegra, mas, aqui, cabe apenas uma pequena transcrição: “É um espetáculo deprimente. Proclamado o resultado de um pleito, senadores, deputados e vereadores, recém eleitos, acotovelam-se na disputa por uma fatia do farnel do poder. De outro poder. Para os derrotados, sempre sobrarão migalhas. Ou alguma suplência. De tal forma essa prática vicia o sistema, que esses suplentes investidos por via oblíqua perdem qualquer vestígio de independência, caso contrário perderão os mandatos. Tornam-se reféns do poder Executivo” (Separação de poderes e efetividade democrática, Revista do Advogado, nº 135, AASP, out. 2017, p. 17 e seguintes).

Nem tudo está perdido. É possível que um mínimo de decência seja conseguido se forem aprovados dois projetos de lei que tramitam no Senado: PLS 60/2017, do senador Ricardo Ferraço, e PLS 429/2017, do senador Antônio Anastasia, sobre compliance em partidos políticos. Conforme estudo feito por André Castro Carvalho e Otávio Venturini, o primeiro deles é bem sucinto, mas o segundo (talvez porque o autor é professor de Direito Público) é bastante completo, “estabelecendo a exigência de mecanismos de compliance nas operações e atividades mais sensíveis dos partidos políticos (operações de fusão e incorporação das agremiações partidárias; contratação de terceiros; gastos de maior vulnerabilidade; recebimento de doações; e ato de filiação). Além disso, houve a proposição de obrigações de due diligence em relação à origem dos recursos das doações em determinados casos, bem como a identificação do beneficiário final do doador com alguma pessoa jurídica de maneira indireta — estabelece que a ausência de programa de integridade, ou mesmo a sua inefetividade, sujeitará o partido às sanções de suspensão de recebimento do Fundo Partidário por até 12 meses”.

Nada disso, porém, estará em vigor nas próximas eleições. Como se viu, os parlamentares não se pejam em estabelecer vantagens e privilégios para si mesmos e cuidam para que medidas moralizadoras sejam aplicadas somente aos outros, que vierem depois de alguns anos.

Fica, portanto, bastante clara a desigualdade entre os candidatos no pleito de 2018. É possível que o Poder Judiciário, pela via interpretativa (que não ofende o artigo 16 da CF, pois não altera a legislação), venha a reduzir essa desigualdade, tornando o pleito mais democrático e garantindo a plena e mais igualitária liberdade de manifestação política. No mínimo, terá que assegurar a integridade física de candidatos e eleitores, dando aplicação concreta ao parágrafo 4º, do artigo 17 da CF, que proíbe a utilização, pelos partidos políticos, de organização paramilitar. Obviamente, isso também se aplica a entidades ou movimentos que funcionam como linhas auxiliares de partidos políticos.

 é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e Consultor Jurídico.

 

Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2018, 8h00 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet

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