Manipulação da mídia e de informações são uma ameaça à democracia
Opinião
Publicado em 18/12/2017

 Por Jorge Queiroz

Há poucos dias tive a honra de participar da Conferência Holberg, na Noruega — Propaganda, Fatos e Notícias Falsas, com o fundador do Wikileaks, Julian Assange, o premiado jornalista John Pilger de renome internacional e com o CEO e Fundador da Impress, Jonathan Heawood.

Foi uma importante conferência centrada em um dos temas mais prementes dos tempos modernos. Foram levantadas diversas questões relacionadas à propaganda do Estado e informações distorcidas nas notícias e mídias sociais, tais como:

• pode-se esperar que os eleitores tomem decisões bem fundamentadas com a existência de propaganda do Estado na mídia?

• estarão os órgãos de imprensa sendo hipócritas ao se auto definirem como os guardiões contra "falsas notícias"? E quem são os atores mais poderosos no que pode ser visto como um teatro global de guerra de informação?

• quanto devemos confiar na mídia em questões de guerra, paz, poder e política? Será que havia, por exemplo, forças escuras e estranhas por trás do surgimento dos ‘populistas’ franceses e da campanha britânica Brexit? A mudança de regime na Ucrânia foi uma revolução popular ou um golpe apoiado pelos EUA? E a eleição americana foi hackeada e roubada por espiões russos?

• as bombas que caíram sobre países como a Síria, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, o Iêmen e o Paquistão fazem parte de grandes projetos humanitários, ou existem motivos secretos para que a mídia esconda intencionalmente a verdade ou seja manipulada para distorce-la?

• o futuro da humanidade está ameaçado pela propaganda controlada pela inteligência artificial?

Muitos cidadãos bem informados perceberam que estamos atualmente passando por uma guerra global de informação que está crescendo tanto aberta quanto secretamente muito além do que o público em geral está ciente. A presença de propaganda e informações manipuladas em notícias e mídias sociais é uma ameaça à nossa democracia e à nossa capacidade de tomar decisões bem fundamentadas.

Quer chamemos de propaganda, notícias falsas, fatos tendenciosos ou distorcidos — a manipulação de informações pode ter vastas implicações para as pessoas que tentam dar sentido ao mundo. Enquanto os políticos e os operadores da mídia se acusam de distorcer a verdade e influenciar o público com afirmações duvidosas, muitas vezes não está claro quais são os interesses que estão por trás das respectivas narrativas e se as noticias são ou não são uma descrição verdadeira dos fatos. No Brasil, podemos observar com nitidez as noticias e declarações tendenciosas voltadas para a manipulação da opinião pública, fato que se estende a programas de entrevistas e até mesmo comerciais e telenovelas.

A imprensa está integrada à ordem das instituições existentes. Referimo-nos à mesma como órgão formador de opinião e opinião pública, tradicionalmente aceita como atividade que exerce influência na sociedade. Com efeito, a imprensa é um dos principais agentes de controle da ordem atual.

As populações foram mobilizadas por trás da propaganda de governo e mentiras por muito tempo. Manipulação e propaganda através da mídia levou a quase todas as guerras desde a segunda Guerra Mundial, como o incidente do Golfo de Tonkin/Guerra do Vietnã, Iraque e outros. Tornou-se uma questão importante uma vez mais durante as eleições dos EUA em 2016 que incluiu vazamentos dos arquivos Podesta e foram popularizados pela mídia convencional dos EUA como “fake news”, notícias falsas.

Observamos que o Facebook e o Google declararam na mídia que decidiram intervir nas eleições francesas de 2017, alegando que o objetivo era coibir transmissão de notícias falsas. Essa é uma forma de censura privada onde os dois gigantes avaliaram ou afirmaram o que seria uma notícia falsa. O aspecto intrigante é: quem determina o que é notícia falsa e o que não é? Havia razões para que as principais potências do ocidente se preocupassem com a eleição de Macron ou Le Pen na França. Essas duas forças da internet queriam que Macron fosse eleito. Isso é visto como um exemplo de uma intervenção aberta do Google e do Facebook. Essas duas empresas sentem que certas formas de disseminação de informações precisam ser interrompidas. Isso representa a censura com uso de inteligência artificial por empresas gigantes do vale do Silício, fato concebido como sendo muito sério.

Em muitos países, mesmo as formas menos sutis de propaganda de governo são frequentemente aceitas como parte da vida cotidiana. No entanto agora, mesmo na Europa e nos EUA, a guerra da informação parece estar aumentando para além do que vimos anteriormente. "Todas as guerras sempre produzem falsas histórias de atrocidade - juntamente com atrocidades reais", escreve o premiado jornalista Patrick Cockburn, "mas no caso sírio, as notícias fabricadas e os relatórios unilaterais assumiram a agenda de notícias em um grau provavelmente não visto desde a Primeira Guerra Mundial ". No caso do Iraque, a coalizão afirmou que apenas um em 157 de seus 14 mil ataques aéreos no Iraque desde 2014 causou uma morte civil, mas a evidência de campo mostra que a taxa real é uma em cada cinco. A evidência também mostra que a reconfortante reivindicação dos comandantes aéreos americanos e britânicos de que as armas inteligentes lhes permitem evitar matar civis é simplesmente falsa, diz Cockburn.

A guerra de propaganda global tornou-se pior. A rapidez da disseminação da informação aumentou dramaticamente; indecentes afirmações falsas podem ser espalhadas pelo mundo de forma muito rápida independente do fato da capacidade das pessoas em detectar notícias falsas haver também aumentado.

Houve um consenso entre os palestrantes que o ‘poder/establishment’ precisa controlar o que está na mente das pessoas, o que agora é feito através da inteligência artificial. A inteligência artificial é a maior ameaça para a humanidade, maior ainda que a mudança climática. O capitalismo de vigilância está em vigor e tem uma grande influência sobre os seres humanos (por exemplo, vídeos de política externa que são críticos aos EUA não recebem mais dinheiro do Google). A humanidade não será capaz de detectar o que está acontecendo com a humanidade devido às mentiras e à manipulação. Se todo o processo é muito rápido, as pessoas não conseguem ver ou perceber a veracidade das notícias e assim não podem agir nem discutir o que fazer — existe uma nuvem de informação falsa que pode encobrir/esconder as ações dos principais grupos de poder internacionalmente, um fenômeno visto como apocalipse de notícias falsas (Fake News apocalypse).

O fato de que algo é feito dentro da lei não o torna justo. A natureza do poder é caracterizada por excepcionalidade, não seguindo as leis que todos devem seguir. Nenhum Estado pode evitar a corrupção para administrar leis em seu próprio benefício. Ainda que essas leis sejam injustas, é importante que sejam conhecidas — torná-las previsíveis. A arbitrariedade pode atacar as pessoas — o assassinato de Sócrates foi cometido dentro da lei, o assassinato de Jesus foi cometido dentro da lei, o extermínio de milhões de índios na América do Norte, México, Peru e outros países foi cometido dentro da lei, a escravidão, etc.

É vital que haja um tratamento justo para os denunciantes — sem eles, muitos grandes crimes, incluindo corrupção e atrocidades que são perpetradas não virão à luz. Chelsea Manning foi um exemplo de decência e coragem e foi tratado como um traidor pelo governo americano. Edward Snowden é outro exemplo famoso. O Brasil precisa que as pessoas tenham coragem de denunciar os grandes crimes e quem denuncia necessita de proteção. A maioria das pessoas não conhece Sarah Tilsdale.

Na década de 1980, Sarah Tisdale, funcionária do Ministério das Relações Exteriores britânico, foi presa por vazar para o jornal The Guardianfotocópias de planos dos EUA para implantar mísseis de cruzeiro na Grã-Bretanha. Sua ação só foi descoberta após o então editor, Peter Preston, cumprir uma decisão do Supremo Tribunal para que entregasse os documentos. Existe um mantra jornalístico há muito estabelecido que o jornalista nunca divulga suas fontes — um código necessário se quisermos ter uma imprensa livre — e Preston foi isolado por colegas e críticos por deixar Tisdale pagar o preço do furo jornalístico do The Guardian.

A manipulação, distorção e mentiras incluem o discurso político favorito de hoje que promove a austeridade — o castigo econômico coletivo de milhões de pessoas comuns; cortar no osso todos os benefícios sociais tais como saúde pública, infraestrutura, educação, previdência e outros. A crise financeira de 2008 foi a notícia verdadeira e real que expôs um império financeiro podre; grandes bancos e banqueiros foram revelados como corruptos e ficaram praticamente sem qualquer punição.

No caso do Brasil, a notícia real foi seu grande esquema de corrupção política iniciado em 2003 e que destruiu o país, envolvendo a Petrobras, BNDES, Fundos de Pensão e outros, pegos pela operação "lava jato".

Depois de alguns meses a mensagem da mídia mudou, o império podre desapareceu da notícia e o discurso mudou para austeridade, uma construção e invenção política e dessa mesma mídia. A punição está sendo imposta à sociedade, não aos criminosos financeiros e políticos. No Brasil a ORCRIM instalada nos três poderes busca acintosamente desviar o foco dos principais anseios da população, entre os quais o fim do foro privilegiado e da impunidade, redução do tamanho do Estado, fim dos seus elevadíssimos salários/mordomias totalmente fora da realidade brasileira e mundial.

É importante observar que a nova esfera pública é a internet / mídias sociais. Os 5 desafios da nova esfera pública são:

1. os novos guardiões ou gatekeepers são os algoritmos. Corporações e governos pagam ou manipulam os novos guardiões que simplesmente ficaram subterrâneos tornando-se guardiões ocultos (os antigos eram proprietários de mídia e editores);

2. o próprio jornalismo — praticar o jornalismo real; na antiga esfera pública, o jornalismo desempenhou um papel importante;

3. propaganda –— hoje é difícil identificar a diferença entre notícias, propaganda comercial e propaganda política. Existe um conteúdo homogêneo e as pessoas não conseguem distinguir a diferença;

4. privacidade — hoje em dia deixamos um rastro em todos os lugares onde vamos; nossos dados são compartilhados com empresas poderosas que, por sua vez, compartilham com anunciantes e governos;

5. cinismo — a confiança entrou em colapso. As pessoas e as instituições devem conquistar nossa confiança. Atualmente existe uma atitude cínica — os cínicos acreditam que já conhecem as respostas, os cínicos sabem tudo. O problema com o cinismo é que os poderosos não são desafiados — eles navegam em um mar de meias verdades e mentiras. Precisamos de ceticismo, não de cinismo. Os céticos são diferentes, eles querem verificar.

Muitas iniciativas estão sendo tomadas para convocar a grande imprensa a prestar contas — há uma necessidade urgente de uma nova linguagem no jornalismo. Além disso, um grande movimento coletivo contra guerras, injustiça social e desigualdade está aumentando. Esta maior conscientização é essencial para mudar a ordem atual do jornalismo falso.

Grande parte dos problemas do Brasil de hoje se deve ao fato de muitos brasileiros não estudarem história — um problema que se estende a vários países. Isso porque se não entendemos o passado, não entenderemos o presente e não saberemos o que fazer com relação ao futuro. Este aspecto torna as pessoas mais vulneráveis à toda sorte de manipulação como ocorre atualmente.

 

J é presidente e fundador do Instituto Brasileiro de Gestão e Turnaround.

Revista Consultor Jurídico, 18 de dezembro de 2017, 7h16 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet 
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