Proteção para denunciantes de boa-fé no Brasil está na mira da OEA
Opinião
Publicado em 13/10/2017

 

Por Roberto Veloso e Márcio Rocha

Brasília sediou nos dias 2 e 3 de outubro a visita de grupo de especialistas internacionais em legislações de combate a corrupção. Na ocasião, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe), por meio de seu presidente Roberto Veloso, e do desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região Márcio Rocha – coordenador, em 2016, do projeto na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) sobre denunciantes de boa-fé (whistleblower) —, tiveram a oportunidade de se manifestar.

Oriundo de países signatários da Convenção Interamericana de Combate a Corrupção, o grupo de estrangeiros compõe mecanismo da própria Convenção, realizando visitas locais para conferir o cumprimento dos compromissos assinados. Na visita ao Brasil, os especialistas, entre outros aspectos, procuraram conferir cumprimento da regra do artigo 3º, inciso 8, da Convenção, que prevê a adoção, pelos países signatários, de “sistemas para proteger funcionários público e cidadãos particulares que denunciarem de boa-fé atos de corrupção, inclusive com a proteção da identidade”.

Sendo o relato feito por cidadãos e funcionários um dos mais potentes instrumentos para o combate da corrupção, sabem os países signatários da convenção que esse instrumento poderá não ter efeitos caso correlatamente não se coloque à disposição de tais pessoas um amplo sistema de proteção. Tal sistema deverá ser suficientemente forte para reverter a regra de que é melhor ficar quieto, de boca fechada, frente à corrupção, para não se prejudicar no ambiente de trabalho, na carreira, no meio social ou familiar, ou até mesmo, à integridade física. Para essa proteção, uma das ferramentas essenciais de um sistema de proteção é certamente o resguardo da identidade, como visto, referida expressamente pela Convenção.

No Brasil, a Constituição refere o anonimato ao prever direito de livre expressão, vedando a manifestação do pensamento de forma anônima. Decorrente disso, o Supremo Tribunal Federal, no MS 24.405/04, decidiu que a legislação do Tribunal de Contas de União é parcialmente inconstitucional quando prevê que a Corte de Contas teria a autoridade para manter em segredo o nome da pessoa responsável por informações que tenham desencadeado procedimentos de apuração. A preocupação da Corte Suprema, a partir da regra constitucional que veda o anonimato, foi de não restarem remédios legais, notadamente indenizatórios, aos eventualmente vitimados por denúncia anônima infundada. Embora o julgamento tenha sido por ampla maioria, mesmo os votos convergentes mostravam preocupação com o aspecto de proteção do cidadão, dos interesses dos órgão que necessitam, ou que não podem abrir mão de tais informações sem um elevado custo social.

Vaticinando sobre os efeitos da ausência de proteção da identidade, o ministro à época, Nelson Jobim, anotou que a ausência de um regime de proteção de relatos de interesse público jogaria o cidadão no anonimato puro: “empurra-se, para um lado, o cidadão que queria denunciar –digamos –, com um sigilo, para o anonimato”. De fato, atualmente, em termos de participação da sociedade na luta contra a corrupção e demais irregularidades, somente resta ao cidadão a alternativa do anonimato como medida protetiva. Embora na prática sejam os órgãos vedados a darem valor ao anonimato desde que, ao receberem uma denúncia anônima, realizem diligências confirmatórias, poderão validamente proceder a abertura de procedimentos de apuração, pois esta se baseará naquelas diligências e não no conteúdo anônimo, conforme atualmente decide o STF.

Com base nesse entendimento, a Controladoria Geral da União e a Ouvidoria Geral da União aceitam o relato pela via anônima. Todavia, a investigação decorrerá do regular exercício de suas funções institucionais baseada nas diligências iniciais de verificação. Por sua vez, uma parcela importante do Estado vê o anonimato sob uma ótica fundamentalista. No âmbito do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça veda o anonimato. Já o Conselho Nacional do Ministério Público veda o anonimato, mas propõe a proteção da identidade do denunciante em “situações devidamente justificadas”. Não há, no entanto, descrição exata de quais seriam essas situações.

Essa dependência do anonimato pelos sistemas apuratórios ocorre fundamentalmente pela falta, no Brasil, de um sistema de proteção ao cidadão que deseja cooperar com o Estado. Essa ausência, ao passo facilita a vida dos criminosos, fere interesses tanto da sociedade quanto da Administração que necessita de informações. Primeiramente, no aspecto da Administração, sabe-se que determinados fatos jamais poderão ser apurados sem a cooperação de um insider, ou seja, de uma pessoa com conhecimento dos meandros de empresas e repartições públicas coniventes com ganhos ilícitos. Sob essa ótica, haveria justificativas constitucionais para a proteção da fonte, conforme ressaltado, novamente, pelo ministro Nelson Jobim, na referida decisão perante o STF, com base no artigo 5º, inciso XIV, da Constituição, que protege o sigilo da fonte necessário ao exercício de profissão.

Sob a ótica da sociedade, o pleno exercício da cidadania em sociedades democráticas importa no direito de livre expressão, sem que do exercício desse direito, de boa fé, decorram retaliações. Por retaliações, há que se entender ações tomadas, em geral por superiores hierárquicos, no sentido de causar prejuízos e dano ao denunciante quanto à sua integridade física, moral e ao seu rol de direitos trabalhistas, v.g. demissão, corte de remuneração, corte de benefícios indiretos, mudança de local de trabalho, perda de funções e gratificações, etc.

É importante lembrar que não se considerará como retaliação as ações, mesmo indenizatórias, tomadas pelo denunciado contra o denunciante quando se percebe, na denúncia, a existência de má-fé ou deliberada intenção de ofender e causar danos. É justamente por isso que a Convenção Interamericana contra a Corrupção se limita ao essencial quanto à proteção ao denunciante, anunciando dois aspectos: um, a necessidade de boa-fé; dois, a proteção da identidade, e não o anonimato. Quanto ao primeiro, é cediço que a boa-fé é um princípio geral do direito, quiçá universal, marcadamente exculpante, cuja noção excogita a vontade deliberada de causar dano.

Quanto ao segundo, a proteção de identidade não se confunde com anonimato. A proteção da identidade convive melhor com o Estado de Direito, quer seja por propiciar a responsabilização pelo abuso, quer sob a ótica da cidadania e dos direitos humanos, ao assegurar que as pessoas não sejam silenciadas pelo medo quando pretendem manifestarem-se sobre questões de interesse público. Vale dizer, quando se trata de questões de interesse geral da sociedade – corrupção de funcionários públicos, danos a consumidores, ao meio ambiente, etc. - o cidadão deve ter o direito de não precisar se esconder através do anonimato, e ele mesmo deve ter o direito de poder se identificar quando se manifesta. Daí o sentido de a Convenção ser minimalista ao apontar apenas os dois pilares, deixando à discricionariedade de cada sociedade em construir o sistema de proteção, que assegure o equilíbrio entre direitos, aparentemente, em confronto.

Ciente dessa necessidade de equilíbrio, no Brasil o fórum multi-institucional denominado Enccla , reunindo mais de 40 entidades públicas e privadas, ofertou robusto anteprojeto de lei sobre o tema, visando justamente a regrar o Artigo 3º, 8, da Convenção. Propondo um Programa Nacional de Proteção e Incentivo a Relatos de Interesse Público, trabalhou-se com profundidade os dois referidos pilares (proteção da identidade e boa-fé), além de os demais aspectos demandados para o estabelecimento de equilíbrio entre a proteção do denunciante de boa fé (denominado reportante) e a proteção de pessoas verdadeiramente inocentes.

O anteprojeto de lei ofertado pela Enclla se trata de um trabalho aprofundado, compreensivo das diversas peculiaridades do tema, e que tomou por base estudo das legislações de diversos países e, inclusive, recomendações de especialistas das Nações Unidas, G20, OEA, Conselho Europeu e Transparência Internacional. Todavia, embora o tema apresente aprovação de tantos órgãos públicos e entidades, percebe-se que não tem havido por parte do governo brasileiro e do Congresso uma percepção de que esse programa visa a cumprir compromissos internacionais assumidos pelo Poder Executivo, devidamente ratificados pelo Poder Legislativo.

Esses compromissos dizem respeito à proteção do espectro de direitos dos cidadãos em sociedades democráticas, permitindo o exercício da cidadania, da liberdade de expressão, da cooperação com a transparência dos órgãos públicos e defesa dos interesses da sociedade. Enquanto não implantados tais programas para proteger os brasileiros de bem, que não participaram de qualquer crime e que querem auxiliar a sociedade, o Brasil permanecerá preferindo remunerar e premiar criminosos, que celebram acordos de delação premiada para redução de suas penas, muitas vezes pagas com dinheiro que retiraram dos próprios cofres públicos.

 

 é presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe).

Márcio Rocha é desembargador federal. Coordenador Enccla sobre programas de reportantes.

 

Revista Consultor Jurídico, 12 de outubro de 2017, 8h20/Site Conjur

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