Os muitos abusos do Fisco prejudicam o Brasil
Opinião
Publicado em 10/07/2018
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9 de julho de 2018, 10h44
Por Raul Haidar
II - O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art. 37, caput, e § 4°, da Constituição Federal.”
(Código de Ética do Servidor Público Federal, Dec.1.171 de 22/6/1994)
Há 18 dias, o Código de Ética do servidor federal fez 24 anos de vigência. Quem lhe deve obediência não o cumpre. Sofremos arbitrariedades também de agentes ou autoridades estatuais e municipais e somos vítimas de descaso. O comportamento dos cobradores de impostos não é apenas descaso, mas pode ser crime sujeito à pena de reclusão de até 8 anos, com prazo prescricional de 16 (CP, artigo 316, parágrafo 1º). Como ensina o professor Luiz Regis Prado[1], o bem jurídico que a lei penal protege é o “normal funcionamento e o prestígio da Administração Pública, objetivando resguardar a obediência ao dever de probidade. Secundariamente, protege-se o interesse patrimonial dos cidadãos e também a liberdade daquele que sofreu a coação, já que se trata de delito afim ao crime de extorsão”.
No estado de São Paulo, a LC 939, de 3/4/2003, sancionada pelo governador Alckmin, garante em seus três primeiros artigos que:
“Artigo 1º - Este Código regula os direitos, garantias e obrigações do contribuinte do Estado de São Paulo.
Artigo 2º - São objetivos do Código:
II - proteger o contribuinte contra o exercício abusivo do poder de fiscalizar, de lançar e de cobrar tributo instituído em lei;
IV - prevenir e reparar os danos decorrentes de abuso de poder por parte do Estado na fiscalização, no lançamento e na cobrança de tributos de sua competência;
VI - assegurar uma forma lícita de apuração, declaração e recolhimento de tributos previstos em lei, bem como a manutenção e apresentação de bens, mercadorias, livros, documentos, impressos, papéis, programas de computador ou arquivos eletrônicos a eles relativos;
Artigo 3º - Para efeito do disposto neste Código, contribuinte é a pessoa natural ou jurídica a quem a lei determine o cumprimento de obrigação tributária.
Parágrafo único - Aplicam-se também, no que couber, as disposições deste Código a qualquer pessoa, física ou jurídica, privada ou pública que, mesmo não sendo contribuinte, relacionar-se com a Administração Pública em sua atividade de fiscalização e cobrança de tributos”.
Nos municípios, as leis orgânicas determinam de forma similar. Nesta São Paulo, essa lei data de 4/4/1990 e tem 261 artigos, incluídos os 24 das Disposições Gerais e Transitórias. Diz seu preâmbulo:
“Nós, representantes do povo do Município de São Paulo, reunidos em Assembleia Constituinte, respeitando os preceitos da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgamos, sob a proteção de Deus, a presente Lei Orgânica, que constitui a Lei Fundamental do Município de São Paulo, com o objetivo de organizar o exercício do poder e fortalecer as instituições democráticas e os direitos da pessoa humana”.
Todos querem respeitar a Constituição. Como está na minha coluna de 18/6, saiu na Folha por um motivo qualquer uma “reporchantagem”[2].
Mas falta de ética é FATAL para nosso maravilhoso Brasil. Os leitores sabem o que é ética.
Vamos aos ABUSOS DO FISCO, nos diferentes níveis de poder. Esta palavra, como anagrama de podre, pode apodrecer quem o exerce.
Fisco federal
Em pequena empresa da região metropolitana de São Paulo, auditores obrigaram um empresário a “prestar depoimento”. Impediram-no de sair do escritório e tomaram um interrogatório ridículo e nulo. O empresário, que é engenheiro, respondeu a tudo e falou a verdade, embora não estivesse legalmente obrigado a isso, como investigado, na forma da Constituição.
Os auditores forneceram cópia da “coisa” apelida de depoimento . Podem receber certificado e carteira do Conselho Federal dos Apedeutas Profissionais . Tal “profissão” foi notícia na ConJur de 26/9/1997. Vejam pesquisando pela data. A história verdadeira e divertida rendeu reportagem na Veja. O título: “A carteira de identidade ficou na portaria”.
No caso, poderia o empresário chamar a polícia, mas não perder tempo, pois tinha que prestar assistência à sua filha. Os auditores, educados, permitiram sua ausência durante algum tempo para isso.
Em junho de 1995, antes da existência da ConJur, “equívoco” gigantesco de equipe de auditores viajou pela Europa, a Receita Federal violou o sigilo e autoridades deram entrevistas. Isso gerou história fantástica, lavrando-se auto de US$ 240 milhões contra uma importadora.
Em 5/1/1998, após a inauguração da ConJur (procurem pela data), a verdade prevaleceu, declarando-se improcedente o auto. Fez-se justiça, mas a importadora acabou, ante a repercussão das notícias e presumida credibilidade das autoridades. Mais de 50 lojas fecharam e cerca de 2 mil empregos foram extintos. O nome da notícia aponta a vítima: “Grupo Regino foi absolvido”.
Fisco estadual
Em SP, os abusos são maiores. A Daslu foi atuada em valor elevadíssimo por não exibir cópias de seus livros e documentos no prazo de 30 dias.
A defesa comprovou que todos os seus documentos foram apreendidos pela Polícia Federal e estavam na posse do Fisco federal. Apesar disso, ativa, o auto foi mantido! Como não fez o impossível, foi autuada. Resultado: empresária condenada a pena de mais de 90 anos, que morreu sem cumpri-la.
Na semana passada, em cidade próxima a Jundiaí, houve audiência na 1ª Vara Criminal sobre crime contra a ordem tributária. O réu, condenado em outro caso do qual apelou há poucos dias perante a mesma juíza, provou que há três ações sobre os mesmos fatos. Mais uma vez a culpa é dos fiscais estaduais, repetindo fatos supostamente ilícitos nos três autos de infração.
Fisco municipal
Na ação de fiscais paulistanos, há indícios de crimes (alguns comprovados), prática de atos administrativos ilegais, Constituição traída, interpretações subjetivas etc. Um caso emblemático está na ConJur de 16/2/2015, intitulado “A história dos escritórios virtuais e tantas minúcias”[3].
Faz hoje seu segundo aniversário caso de ISS em terceirização de mão de obra. O título: “Autos de infração, a verdade material e a moralidade”[4].
Quem são os responsáveis?
Respondo: o Executivo e o TJ-SP. O maior responsável é o Executivo. Não costumo lançar todas as nossas desgraças sobre a corrupção. A não ser, claro, nos casos com sentença condenatória definitiva.
Ora, governar é administrar prioridades. O gestor do dinheiro do povo não deve administrá-lo de forma irresponsável.
O governador, ao permitir que trens importados apodreçam enquanto o metrô atrasa, deve ser responsabilizado por isso. Também não pode manter a tal “Nota Fiscal Paulista”. Vejam a coluna de 20/3/2017: “Cassinos das notas fiscais causam prejuízos ao povo”[5].
Quanto ao TJ-SP, certamente seus nobres dirigentes podem ocupar melhor seu tempo e os recursos do povo. Parece-me que há eventos dispensáveis e despesas com viagens, veículos, estadas, publicações etc. evitáveis. Na primeira instância, tanto na capital quanto no interior, a situação é ruim.
Em Campo Limpo Paulista, servidores trabalham em espaços exíguos e com poucos recursos materiais. Em Itapecerica da Serra, prédio de quatro pavimentos não atende normas de acessibilidade previstas em lei.
Estive em Itapecerica e, idoso com problemas de coluna, não obteria cópia de autos de execução fiscal não fosse a gentil ajuda de servidores, também vítimas por trabalharem em garagem, local com baratas e cupins, sem ventilação adequada. Isso eu testemunhei.
Espero que o novo presidente do TJ resolva isso, eis que uma fonte me revelou que um ex-presidente suspendeu reforma já com verba aprovada, alegando que “aquilo” podia esperar. O presidente não foi mais ao local, pois se aposentou e ocupa cargo de confiança no Executivo.
Os magistrados de primeira instância também são vítimas. Não há juízes suficientes neste estado, e as condições de trabalho e segurança não são satisfatórias nas pequenas comarcas. Por questões éticas, não posso dar mais informações aos leitores.
Todos os servidores do Executivo e do Judiciário que conheço merecem meu respeito. Vale aqui a lei da ação e reação. Em quase meio século de atuação na área, nunca tive qualquer problema.
Aborreci-me com erro judicial e, vendo o juiz trabalhando, fiquei preocupado. Hoje é meu colega e orgulho-me de tê-lo como amigo. Não gostei da demora de um servidor e quase briguei. Com mais atenção ao fato, vi uma vítima: remuneração injusta e más condições de trabalho.
Assim, reafirmo a minha fé no Judiciário e na Justiça. Se perdê-la, mudo de profissão.
[1] PRADO, Luiz Regis, Comentários ao Código Penal, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 3ª edição, 2006, pág. 849.
[2] https://www.conjur.com.br/2018-jun-18/raul-haidar-mudancas-judiciario-nao-podem-preocupar
[3] https://www.conjur.com.br/2015-fev-16/historia-escritorios-virtuais-tantas-minucias#
[4] https://www.conjur.com.br/2016-jul-18/justica-tributaria-autos-infracao-verdade-material-moralidade#
[5] https://www.conjur.com.br/2017-mar-20/justica-tributaria-cassinos-notas-fiscais-causam-prejuizos-povo#
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 9 de julho de 2018, 10h44/Site Conjur
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